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Acordar todas as manhãs sabendo que se matou um ser humano é um
inferno diário em que vivem todas as pessoas que foram envolvidas na
rede dos "fabricantes de anjos".
Acordar diariamente, quer o sol brilhe, quer caia a chuva, sabendo
que o próprio filho nunca entrará com seu passinho de criança para
chamá-la, com suas perguntas e exigências infantis, que nunca
viverá a mais comum das emoções humanas, é uma agonia que ninguém
jamais poderá conceber, a não ser a pessoa que fez um aborto.
Este remorso incurável nos foi descrito por Yvonne, uma funcionária
de escritório, com vinte e três anos, de uma cidade da Inglaterra
central, que abortou há quase cinco anos, em novembro de 1969.
Aparentemente ela é uma esposa normal, recém-casada, feliz com
tudo que ela e seu marido conseguiram juntar, com planos de se mudarem
para um bairro mais distinto, onde possam deixar, na porta de casa a
garrafa de leite, sem receio que a roubem.
Nos olhos negros, semi-encobertos por seus longos cabelos pretos,
estão muitos sinais de sua agonia diária, fáceis de distinguir,
porque são comuns às mulheres que fizeram aborto: vive de
calmantes... Alguns dias brinca com o maior entusiasmo com as filhas
mais novas do seu irmão; outros dias odeia-as intimamente...
Renuncia a encontros sociais no último momento, quando já estão,
ela e o seu marido, se encaminhando para a porta . . . e
recentemente sente-se incapaz de fazer compras sozinha no centro da
cidade, e de enfrentar uma simples volta pelo quarteirão, como ir ao
dentista... e desde que casou está plenamente convencida de que é
estéril...
Mas, deixemos que Yvonne conte a sua história:
"Eu tinha dezoito anos e fazia amor com o meu namorado. Uma noite
fiz uma coisa que nunca tinha feito antes: fiquei fora de casa toda a
noite e disse a meu pai que ia dormir na casa de uma amiga. Era a
primeira vez que meu namorado não tomava precauções e na manhã
seguinte, enquanto tomava banho, senti que estava grávida. Não
posso explicar como, mas senti que estava estranha.
Nos cinco meses seguintes procurei convencer-me constantemente de que
não estava grávida. Inventava todas as espécies de desculpas. Mas
o fato é que eu não podia encarar a realidade. Sentia terríveis
enjôos pela manhã, ia ao banheiro e abria todas as torneiras para que
meu pai não pudesse me ouvir.
Vivia terrivelmente cansada. Cochilava no ônibus e depois que
chegava em casa ia deitar às seis horas e na manhã seguinte ainda
estava cansada. Mesmo assim, não dizia nada a ninguém. Papai já
tinha bastante preocupações e problemas. Minha mãe nos tinha
abandonado há alguns meses, e ele estava muito nervoso.
Finalmente entrei numa grande loja em que meu irmão trabalhava e lhe
contei tudo. Ele disse que tínhamos de contar tudo a papai e voltamos
os dois para casa.
A reação imediata de papai foi fazer o aborto, e ninguém pensou em
nada além disso. Entrou em contato com a minha mãe e ela voltou para
casa - é terrível pensar que este fato causou a reconciliação dos
dois - e dentro de uma semana eu abortei. Fui arrastada, não houve
tempo
de pensar e ninguém nos ajudou, a mim e a meus pais, a parar para
pensar. Ninguém sugeriu alternativas, nem falou em adoção.
E foi assim que arruinei a minha vida... era tão jovem... meu
namorado não me servia para marido... e ninguém queria casar com
uma mãe solteira. O que é que os vizinhos iriam dizer? Eles
estavam certos de uma coisa: o namorado. Eu acreditava que estava
apaixonada por ele, mas ele não quis saber, e só veio visitar-me
duas vezes depois de ter terminado tudo. Não parava em nenhum emprego
e não teria sido um bom marido para mim.
Bem, papai me levou ao médico da família e este disse que eu estava
grávida de quatro meses e meio ou cinco. Disse-nos que era contra o
aborto e, ainda mais, já era demasiado tarde. Acrescentou que não
queria tratar do caso e pediu apenas que, se eu fizesse aborto, lhe
comunicasse depois para registrar na minha ficha médica.
Aconselhou-nos entrar em contato com a Pregnancy Advisory Service,
de Birmingham (agora o British Pregnancy Advisory Service).
Papai ligou para lá e combinou quase tudo por telefone. Fui falar
com uma mulher que se apresentou como assistente social, na sua casa,
numa rua escura. Fez-nos algumas perguntas, e uma das primeiras
coisas que disse foi: 'Custará cento e cinqüenta libras. Está em
condições de pagar?' Acrescentou que se não pudéssemos fazer a
despesa, talvez pudesse arranjar a coisa um pouco mais barato. Ela
cobrava oito libras que, tentou explicar, seriam do médico. Era a
consulta. O único conselho que me deu foi de como abortar. Eu
precisava era de conselho e de alguém que me dissesse o que era uma
criança, um ser humano, e o que eu poderia fazer melhor para ele.
Pode estar certo de que em nenhuma ocasião ninguém me falou da
criança como uma criança. Todos eles procuraram me convencer de que
não era nada, de que era algo do qual a gente se deveria livrar o mais
rápido possível. Eram pessoas malvadas, só queriam dinheiro, não
se preocupavam comigo, nem com a criança que eu trazia dentro de mim.
Essa mulher do PAS me enviou ao Dr. Sisar Dutta, em
Birmingham, que me disse que fosse para a 'Lady Margaret Nursing
Home', de Ealing, em Londres, no domingo seguinte, com o
dinheiro vivo, num envelope branco. Disse que faria o aborto. Não
me examinou então, nem depois.
Papai não tinha o dinheiro, na ocasião. Teve de falar com o
gerente do banco, que era seu amigo, e lhe pediu um empréstimo. O
gerente perguntou para que era o dinheiro e o meu pai respondeu que era
para gastos pessoais. O gerente insistiu que tinha de saber em que o
dinheiro iria ser gasto, porque era um empréstimo pessoal. Meu pai
respondeu: 'Minha filha está com problemas', e o gerente
replicou: 'Ah! então é para um aborto, está bem!'
Durante toda a semana tive de falar com um mundo de pessoas e ninguém
me disse que parasse um pouco para pensar. Foi a coisa mais simples
combinar o aborto e arranjar tudo para levá-lo a cabo. No sábado à
tarde, a mulher do PAS telefonou-me e ofereceu-me insistentemente
transporte para a clínica em carro de luxo, por um extra de cinco
libras. Disse-me que o carro me apanharia e me levaria a mim e a
outras mulheres à clínica e nos levaria de volta e nos deixaria cada
qual na própria casa.
Fui com meu irmão e meu namorado. O meu irmão disse que não
aprovava o aborto, mas ele não iria contrariar papai, e meu namorado
simplesmente o seguia passivamente.
Quando chegamos à clínica, levaram-me para uma sala em que havia
umas vinte moças. Disseram-me que sentasse na cama e esperasse por
uma enfermeira que viria apanhar os envelopes. Ela chegou, apanhou os
envelopes e contou o dinheiro de cada uma de nós. Em seguida
disseram-me que tirasse a roupa e me fizeram subir três lances de
escada para a sala de operação. Não fizeram exame de sangue. Não
me fizeram nenhuma pergunta. A última coisa de que me lembro foi que
o anestesista me disse que deitasse na mesa de operação.
Lembro-me. também de ter visto o Dr. Dutta em sua roupa de
cirurgião, e em seguida, a injeção.
Quando retornei à consciência, vi diversos médicos sentados em
redor de uma mesa, jantando. Estavam também com roupa de
operação. Suas máscaras estavam em redor do pescoço e usavam ainda
os sapatos especiais para cirurgia.
Sentia muitas dores. Uma enfermeira me ajudou a descer da mesa de
operação e me fez descer os três lances de escada até minha cama.
Tive que parar depois de cada lance, por causa das dores. Caí na
cama perdendo muito sangue. Pensava que alguma coisa tinha dado
errado, porque fui a primeira a entrar na sala de operação e a
última a sair. Todas as outras moças estavam andando de um lado para
outro e nenhuma delas demonstrava sinal de que estava com dores. Uma
enfermeira me mandou levantar. 'Caminhe um pouco', disse ela,
'você vai sentir-se muito melhor. Ficar aí deitada não vai
ajudá-la em nada'. Notei que a minha cama era a única que estava
coberta de sangue. Quando me queixei das dores, ela me disse:
'Essas dores depois do aborto são comuns'.
Meu irmão veio ver-me e ficou muito preocupado. Esperamos uma
eternidade até que viesse alguém para nos explicar o sangue e as
dores, e por fim meu irmão disse que achava melhor levar-me para
casa. Eu estava num estado de prostração. Andava com dificuldade,
todas as minhas roupas debaixo do casaco estavam ensopadas de sangue.
O pessoal da clínica só queria livrar-se de mim, ninguém me
perguntou como eu estava e nem sequer vi o Dr. Dutta depois da
operação. Não me deram nem mesmo comprimidos para secar o leite de
meus seios.
Quando cheguei à estação da minha cidade não podia mover-me.
Caí sobre a maleta e meu irmão teve de telefonar a meus pais para que
viessem me buscar. Pensei que estava morrendo.
Minha mãe me colocou na cama e durante três dias agonizei com dores
de parto. A mulher do PAS disse à minha mãe, quando ela
telefonou: 'Não se preocupe. Dê-lhe alguns analgésicos'. As
dores pioraram em vez de diminuir e minha mãe teve de chamar o
médico. Ele colocou a mão sobre o meu ventre e disse: 'Você não
abortou. Você ainda está grávida'. Chamaram uma ambulância e
levaram-me para o hospital. Enquanto estava deitada na sala de
emergência, tiraram de mim uma massa branca. Disseram-me que o
aborto tinha sido incompleto, que me tinham costurado de qualquer modo
e que aquela parte da criança tinha ficado dentro de mim.
Passei um mês no hospital. Na primeira semana tomei seis injeções
por dia, para que a placenta se soltasse. Disseram-me que se ela
permanecesse dentro de mim por mais tempo, com certeza eu teria ficado
estéril. Todo o tempo que passei lá pensava que ia morrer. Papai
se culpava e não tinha coragem de olhar para mim e tinha vergonha de
visitar-me no hospital.
Quando voltei para casa, durante muito tempo fiquei num estado de
nervos lamentável. Tudo parecia um problema para mim quando estava
grávida. Eu tinha apenas dezoito anos e naquela idade não se pensa
em todos os aspectos do problema: a gente quer somente se livrar da
'coisa'. Mas eu não queria matá-lo. Apesar do meu horror em
estar grávida, uma parte de mim gostava daquele enjôo matinal, e de
sentir a criança mexendo como borboletas esvoaçando dentro de mim.
Depois não havia mais nada. Perguntava-me a mim mesma se teria sido
menino ou menina. Qual era a cor do seu cabelo. Deitava-me na cama
em casa e depois sonhava que isso nunca tivesse acontecido, que eu
tivesse tido uma criança viva que estivesse choramingando no quarto ao
lado. Eram estes os pensamentos que tinha sobre meu filho, que ele
estava vivo! Mas acordava e encarava a terrível realidade. Eu
fantasiava mil coisas. Olhava as crianças nos carrinhos. Entrava em
lojas de artigos para bebês, pegava nas roupinhas que fingia
escolher. Mas nunca comprei nada.
Finalmente comecei a sair de novo, comecei a ter a minha vida social,
mas desprezava os homens. Tratava-os bem, mas não permitia nem que
eles me beijassem o rosto. Odiava-os a todos.
Estou certa de que se no ano passado não tivesse encontrado o meu
futuro marido, teria enlouquecido. No estado em que me encontrava era
terrivelmente áspera com ele, sempre que ele tentava dirigir-me a
palavra. Mas ele persistiu, e depois da primeira vez que saímos
juntos, tudo mudou. Dois meses depois estávamos noivos. Quando eu
disse a meus pais, eles me aconselharam a lhe contar o caso do aborto.
Ele disse que não tinha importância e que ainda me amava e queria
casar-se comigo.
Durante algum tempo tudo corria bem, fazia planos para o meu
casamento, para o futuro lar. Era feliz. Mas desde o nosso
casamento comecei a sentir-me terrivelmente deprimida. Vivo de
calmantes, e acho cada vez mais difícil sair sozinha durante o dia e
até freqüentar a sociedade com meu marido. Ele tem de ir a toda
parte comigo, até para fazer compras. Continuo a ter pesadelos,
sobre tudo o que me aconteceu e estou certa de que mesmo se não tivesse
acontecido aquelas terríveis circunstâncias que cercaram o meu
aborto, os efeitos mentais e emocionais teriam sido o mesmo para mim.
Queríamos ter filhos desde o começo e embora nunca tivéssemos usado
anticoncepcionais, ainda não consegui engravidar. Pensava mil coisas
e estava convencida, até a semana passada, de que era estéril.
Disseram-me no hospital que essa era uma possibilidade, mas eu não
tinha pensado nisto até o dia do meu casamento. Sei que é uma
bobagem, mas acho que é um castigo. Mas fui examinada, submeti-me
a testes e os médicos me disseram que não havia nada que me impedisse
de ter filhos. O meu problema era apenas de nervos e de estado de
depressão mental.
Os bebês não me saem da cabeça todo o tempo. Todas as manhãs, se
fazemos amor, eu fico pensando se estou grávida. Não posso fazer
nada sem que as crianças se metam no meio. Já notou como as
propagandas da televisão se utilizam de bebês?
Minhas regras estão atrasadas de dois dias e eu estou torcendo...
Mas não significa nada, porque depois do aborto as minhas
menstruações têm sido muito irregulares. Temos em nossa casa um
quarto de criança todo preparado, não sabemos para quando. Estou
simplesmente desesperada para ficar grávida, para criar uma nova
vida. Se pelo menos alguém me tivesse dito que a criança que eu
trazia comigo era uma vida, que talvez não fosse o momento certo de
pô-lo ao mundo, mas eu não tinha o direito de mata-lo. Só tinha
necessidade de compreensão e bons conselhos. Era pedir muito?
Entretanto, olhe o que aconteceu. O aborto é praticado mais do que
nunca. Aquele Dr. Dutta teve que responder a um processo sobre o
meu caso, mas só foi suspenso da sua profissão muito mais tarde,
quando foi processado por fazer propaganda! E a clínica só foi
fechada depois que uma mulher morreu lá.
Sabe que encontrei lá uma menina de apenas quinze anos. Ela tinha
ido com o namorado. Seus pais nem sequer sabiam. Deus sabe onde
arranjaram o dinheiro. Se o caso dela tivesse as mesmas
conseqüências que o meu, ela voltaria para casa e morreria sem
ninguém saber.
As moças não sabem realmente o que fazem. É tudo tão fácil! No
meu trabalho, :duas moças começaram a falar de ter crianças.
Ambas são recém-casadas, têm muitas contas a pagar, usam a
pílula, e nenhuma delas planeja ter filhos durante muitos anos.
Perguntei a uma delas o que faria se por acaso ficasse grávida e ela
respondeu-me simplesmente que não ficaria. Então a outra
disse-lhe: 'Mas suponhamos que aconteça, o que é que você
fará?' Ela respondeu: 'Faria aborto. Sei onde se faz'.
Perguntei-lhe se ela sabia mesmo o que estava fazendo e se sabia das
reações emocionais que se seguem a um aborto. Ela respondeu:
'Bobagem, todas fazem aborto. Eu nem duvido!' Então eu lhe
disse que o aborto era uma coisa má, que era um assassinato, e ela
respondeu: `Os jornais estão cheios de casos. Naturalmente não é
assassinato'.
O Sr. está vendo! Nenhuma mulher que não fez aborto realmente
entende o que ele significa. A jovem que sai de um daqueles lugares
pode pensar que não é nada. Pode não sentir nada imediatamente ou
nos dias que se seguem: mas os efeitos aparecerão, mesmo anos mais
tarde. É certo. Os efeitos aparecerão. Não se pode escapar do
remorso e da convicção de que o aborto é um assassinato.
No meu caso, os efeitos e as conseqüências do aborto se fizeram
sentir em ondas: algumas vezes me batiam levemente na consciência,
outras vezes quase me afogavam. É algo que não dá para esquecer. O
peso da culpa na consciência não desaparece nunca".
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